terça-feira, 24 de março de 2015

O Inconsciente

O INCONSCIENTE
A grande revolução causada por Freud na humanidade foi justamente a descoberta do inconsciente e da sua importância na determinação das nossas ações, de modo que passamos a ter a noção de que não somos senhores de nossa própria história, porque há algo em nós que comanda a nossa vida e esse algo não é a nossa razão, a consciência, mas o inconsciente. Freud inaugura a Psicanálise com A Interpretação dos Sonhos em 1900, quando demonstra que o sonho é uma manifestação do inconsciente.
O interesse da Psicanálise está no sujeito, no sujeito que fala, no sujeito do inconsciente. Em geral, a procura por um analista é motivada por um sofrimento, seja ele psíquico ou físico, e por uma suposição de que é o analista que detém o saber necessário para a diminuição da dor. Entretanto, para a Psicanálise, o paciente é quem de fato possui o saber, mesmo que ele ainda não saiba disso, pois se trata de um saber inconsciente e é justamente esse saber que determina os sintomas, as ações.
Em psicanálise, os efeitos da análise são vivenciados pelo analisando a posteriori, não há como prever as consequências de um corte do analista. Em psicanálise existem duas regras fundamentais, uma por parte do analista, equivalente à condução do tratamento, ou seja, cabe ao analista relançar o (a) analisando (a) no seu discurso, manter a atenção flutuante, e outra por parte do analisando, a associação livre. Essas duas regras colocam para nós a questão central da psicanálise: o que está em questão na análise é o discurso do sujeito e a escuta desse discurso.
Sabemos que para que haja análise é preciso que tenhamos analista e analisando, é a escuta desse que possibilitará a este a produção do inconsciente, o analista devolve ao paciente aquilo que o analisando ainda não é capaz de escutar. Ser analista é uma função exercida por alguém durante um processo de análise e é da ordem do impossível, é preciso que se pague o preço de ocupar um lugar de não-saber, de não entrar enquanto pessoa, o que realmente interessa na análise é o discurso do analisando, o sujeito do inconsciente do analisando.
Na análise trabalhamos com a linguagem, com o simbólico, com aquilo que o paciente nos traz mesmo sem saber. Segundo Lacan, mesmo antes de nascermos estamos imersos numa infinidade de significantes: “[...]O homem, desde antes de seu nascimento e para-além da morte, está preso na cadeia simbólica [...]” (1966, p. 471).
Há um texto de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Nascer” que representa muito bem o universo simbólico no qual estamos situados mesmo antes de nascermos. Nesses escritos, ele nos conta a história de um menino que mesmo antes de nascer tinha um mar de significantes a sua espera:

 O FILHO já tinha nome, enxoval, brinquedo e destino traçado. Era João, como o pai, e como aconselhavam a devoção e a pobreza. Enxoval e brinquedo de pobre, comprados com a antecedência que caracteriza, não os previdentes, mas os sonhadores. E destino, para não dizer profissão, ou melhor, ofício, era o de pedreiro, curial ambição do pai, que, embora na casa dos 30, trabalhava ainda de servente.

Tudo isso o menino tinha, mas não havia nascido. Eles nascem antes, nascem no momento em que se anunciam, quando há realmente desejo de que venham ao mundo. O parto apenas dá forma a uma realidade que já funcionava. Para João mais  velho, João mais moço era uma companhia tão patente quanto os colegas das obra, e muito mais ainda, pois, quando se separavam ao toque da sineta, os colegas deixavam por assim dizer de existir, cada um se afundava em sua insignificância, ao passo que o menino ia escondido naquele trem do Realengo, e eram longas conversas ente João e João, e João miúdo adquiria ainda maior consistência ao chegarem em casa, quando a mãe, trazendo-o no ventre, contudo o esperava e recebia das mãos do pai, que de madrugada o levara para a obra. 

Estas imaginações, ditas assim, parecem sutis, mas não havia sutileza alguma em João e sua mulher. Nem o casal percebia bem que o garoto rodava entre os dois como ser vivo; pensavam simplesmente nele, muito, e confiados, e de tanto ser pensado João existiu, sorriu, brincou na simplicidade de ambos. Como alguém que, na certeza de um grande negócio, vai pedindo emprestado e gastando tranquilamente, João e a mulher sacavam alegrias futuras. João sentia-se forte, responsável. Escolhera o sexo e a profissão do filho; a mulher escolhera a cor, um moreno-claro, cabelo bem liso, olhos sinceros. Não havia nada de extraordinário no menino, era apenas a soma dos dois passada a limpo, com capricho.

Esperar tantos meses foi fácil. O menino já tomava muita parte na vida deles, nascer era mais uma formalidade. Chegou março, com um tempo feio à noite, que ameaçava carregar o barraco. A mulher de João acordou assustada, sentindo dores. Pela madrugada, correram à estação; a chuva passara, ,as o trem de Campo Grande não chegava, e João sem poder mexer-se. As dores continuavam, João levou tempo para pegar uma carona de caminhão.

Na maternidade não havia médico nem enfermeira, que o temporal tinha retido longe. João perdera o dia de serviço e esperou, determinado. Afinal, levaram a mulher para uma sala onde cinco outras gemiam e faziam força. João não viu mais nada, ficou banzando no corredor. Entardecia, quando a porta se abriu e a enfermeira lhe disse que o parto ora complicado mas agora tudo estava em ordem, a criança na incubadora. "Posso ver?" " Depois o senhor vê". Amanhã". Amanhã era dia de pagamento, não podia faltar à obra. Voltaria no domingo.

Mas, no dia seguinte, à hora do almoço, telefonou, uma complicação, não se ouvia nada, alguém na secretaria foi indagar, respondeu que tudo ia bem, ficasse descansado.

Domingo pela manhã, João se preparava para sair quando a ambulância silvou à porta, e dela desceu, amparada, a mulher de João: " O menino?" " Diz que morreu na incubadora, João". 'E era  menino como a gente pensava, moreninho, engraçado?" Ela baixou a cabeça. "Não sei, João. Não vi. Eu estava passando mal, eles não me mostraram".

E o menino, que  tinha sido tanto tempo, deixou de repente de ser.

 Drummond nos apresenta em seu texto, a não concretização desse nascimento, o menino esperado morreu no parto, e nos diz: “E o menino, que tinha sido tanto tempo, deixou de repente de ser.” (1994, p. 10).
Recorremos a esse texto de Drummond, para exemplificar como a linguagem de fato pré-existe ao sujeito, antes mesmo de nascer há todo um discurso endereçado a ele, trata-se do discurso do outro, essa é a definição que Lacan dá para o inconsciente. Nas palavras dele: “Essa exterioridade do simbólico em relação ao homem é a própria noção mesma do inconsciente.” (1966, p. 471).
Todo esse universo simbólico vai marcando o sujeito, de modo que num primeiro momento repetimos o que nos ensinaram numa certa posição alienante e é a análise que permite sairmos um pouco desta posição e assumirmos nosso próprio desejo, nos separarmos desse outro. Entretanto, sabemos que não é possível nos separarmos totalmente e que, portanto, transitamos num movimento de alienação-separação o tempo todo.

Referências:
- Andrade, de C. D. Nascer. (1994) In: 70 historinhas. Rio: Record, pp. 9-10.
- Lacan, J. Escritos (1966). Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 471.

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