quarta-feira, 25 de março de 2015


Medicalização da vida na contemporaneidade e as contribuições da psicanálise

[...] a experiência de dor, desassossego e inquietude [...] é provavelmente tão antiga como a história do gênero humano. E atravessa cada existência do princípio ao fim. Não menos antiga e constante é a busca de soluções, remédios, cura [...]. 

Essas são palavras do psiquiatra Adriano Amaral de Aguiar. (AGUIAR apud, DANTAS, 2009, p. 564) [1] 

Apesar da experiência de dor, desassossego, sofrimento e inquietude marcarem presença nos agrupamentos humanos, as formas de compreender e de tratar essas dores não são as mesmas em todos os lugares do mundo, ou seja, não são universais.

Entretanto, há em nossa cultura ocidental contemporânea modos hegemônicos de compreensão, investigação, descrição e tratamento do sofrimento psíquico que se pretendem universais. 

Essas práticas predominantes privilegiam os discursos objetivistas sobre a experiência de sofrimento humano e o descrevem em termos cada vez mais físicos, biológicos. Nesta perspectiva o sofrimento é visto como desvio, distúrbio, transtorno que deve ser extinto por meio do medicamento.

Na contemporaneidade, o que se vê é o uso irrestrito de medicamentos e uma medicalização da vida, entendida como um conjunto de práticas que consolidam o medicamento como solucionador de todo e qualquer problema da vida, um conjunto de mecanismos que levam a tornar médicos certos eventos ou problemas da vida cotidiana. [2] 

Há uma proliferação acelerada de novos diagnósticos[3], “todos os dias são criadas novas patologias para as quais se busca uma solução medicamentosa”[4]. A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se associada à produção da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar os sofrimentos existenciais.

Sendo assim, a etiologia e a historicidade do adoecimento deixam de ser consideradas, pois a resposta será encontrada no funcionamento bioquímico e os efeitos da medicação darão validade aos diagnósticos. Com isso, cada vez mais a narrativa do paciente, sua história de vida, os processos psicossociais e políticos envolvidos no adoecimento deixam de ser relevantes, passando a ter validade apenas aquilo que puder ser observado e descrito objetivamente. Desse modo, “ [...] as dimensões conflitiva, imprevisível, irredutível e inapreensível da subjetividade vem sendo negadas e tratadas como mera abstrações [...]”.[5]

Nessa perspectiva, a compreensão da doença enquanto experiência subjetiva singular, que não pode ser mensurada, quantificada ou generalizada justamente por escapar do território da precisão, é desconsiderada em favor de um conjunto de sinais e sintomas que se pretendem imutáveis, gerais e passíveis de rigorosa avaliação[6]

Essa visão contribui para a desresponsabilização do sujeito diante daquilo do qual ele padece. Dessa forma, a doença, o sofrimento nada tem a ver com as escolhas e sobre ele nada se tem a dizer.

A psicanálise apresenta-se como alternativa para escapar desse modelo biologizante, uma vez que entende o sofrimento, os sintomas para além do funcionamento biológico. Para a psicanálise a saída para o ser humano é a palavra, esta é o melhor remédio para amenizar a dor de existir. A palavra? Sim, a palavra, pois o homem é um ser de linguagem, marcado pela linguagem.

Não se trata de defendermos uma posição completamente contrária ao uso do medicamento, é claro que há muitos casos em que tal prescrição se torna necessária. Mas é interessante ressaltar o lugar que ele tem ocupado na vida das pessoas, muitas vezes colocado como o ‘salvador da pátria’, como ‘a pílula da felicidade’. Sabemos que tal proposta é enganadora, pois nenhum medicamento é capaz de alterar a vida de tal modo.

Aguiar também nos apresenta alternativas para escapar a esse reducionismo:
é preciso que o clínico se deixe atravessar por outros saberes sobre a subjetividade humana para que possa captar a potência de intervenção dos psicotrópicos e os conhecimentos da biologia, sem cair na medicalização e no aprisionamento pelo diagnóstico, mas sim criando novas possibilidades de vida para os sujeitos que o procuram.
É preciso criar maneiras clínicas de trabalhar com os psicotrópicos sem enclausurar a escuta, o olhar e a intervenção em um aparato teórico cientificista, que concebe a subjetividade como efeito exclusivo de determinações biológicas, gerando uma clínica que só vê e produz ‘doentes’ por toda a parte.[7]

A busca da felicidade é algo que depende da busca singular de cada um. É necessário que cada um lance o olhar para si e procure encontrar as raízes de suas dores. Quando digo dores, faço referências às dores do corpo e também às dores da mente. São muitas as fontes de dores para o ser humano: as relações entre as pessoas,sejam elas amigos ou familiares, são um exemplo deste tipo.

 A psicanálise apresenta-se como um caminho interessante às pessoas que são acometidas pelas mais variadas formas de sofrimento ou mesmo àqueles que desejarem interrogar-se sobre suas marcas, sobre os efeitos da linguagem sobre o seu ser, sobre aquilo que os faz sofrer e que, portanto, desejarem escapar a toda a lógica biologizante e medicalizante proposta na contemporaneidade para a compreensão do sofrimento humano.


[1] DANTAS, J. B. Tecnificação da vida: uma discussão sobre o discurso da medicalização da sociedade. Fractal, Rev. Psicol. [online], Rio de Janeiro,  v. 21,  n. 3, Dez. 2009.
[2] BARONI, D. P. M.; VARGAS, R. F. S.; CAPONI, S. N. Diagnóstico como nome próprio. Psicologia & Sociedade [online], 22(1), 70-77, 2010.  
    RODRIGUES, J. T. A medicação como única resposta: uma miragem do contemporâneo.   Psicol. estud. [online],  Maringá,  v. 8,  n. 1, jun.  2003.
[3] CAPONI, S. Biopolítica e medicalização dos anormais. Physis [online], v.19, n. 2, p. 529-549, 2009.
[4] RODRIGUES, J. T. A medicação como única resposta: uma miragem do contemporâneo.   Psicol. estud. [online],  Maringá,  v. 8,  n. 1, jun.  2003. p. 15. 
[5] GUARIDO, R. A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educ. Pesqui. [online],  São Paulo,  v. 33,  n.1, abr. 2007, p.159.
[6] RODRIGUES, J. T. A medicação como única resposta: uma miragem do contemporâneo.   Psicol. estud. [online],  Maringá,  v. 8,  n. 1, jun.  2003. p. 15. 
[7] AGUIAR, A. A. de. A psiquiatria no divã. Entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 149.

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