Medicalização
da vida na contemporaneidade e as contribuições da psicanálise
[...] a experiência de dor, desassossego e
inquietude [...] é provavelmente tão antiga como a história do gênero humano. E
atravessa cada existência do princípio ao fim. Não menos antiga e constante é a
busca de soluções, remédios, cura [...].
Essas são palavras do psiquiatra Adriano Amaral de Aguiar. (AGUIAR apud,
DANTAS, 2009, p. 564) [1]
Apesar da experiência de dor, desassossego, sofrimento e inquietude
marcarem presença nos agrupamentos humanos, as formas de compreender e de
tratar essas dores não são as mesmas em todos os lugares do mundo, ou seja, não
são universais.
Entretanto, há em nossa cultura ocidental contemporânea modos
hegemônicos de compreensão, investigação, descrição e tratamento do sofrimento
psíquico que se pretendem universais.
Essas práticas predominantes privilegiam os discursos objetivistas sobre
a experiência de sofrimento humano e o descrevem em termos cada vez mais
físicos, biológicos. Nesta perspectiva o sofrimento é visto como desvio,
distúrbio, transtorno que deve ser extinto por meio do medicamento.
Na contemporaneidade, o que se vê é o uso irrestrito de medicamentos e
uma medicalização da vida, entendida como um conjunto de práticas que
consolidam o medicamento como solucionador de todo e qualquer problema da vida,
um conjunto de mecanismos que levam a tornar médicos certos eventos ou
problemas da vida cotidiana. [2]
Há uma proliferação acelerada de novos diagnósticos[3],
“todos os dias são criadas novas patologias para as quais se busca uma solução
medicamentosa”[4].
A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se associada à produção
da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar os sofrimentos
existenciais.
Sendo assim, a etiologia e a historicidade do adoecimento deixam de ser
consideradas, pois a resposta será encontrada no funcionamento bioquímico e os
efeitos da medicação darão validade aos diagnósticos. Com isso, cada vez mais a
narrativa do paciente, sua história de vida, os processos psicossociais e
políticos envolvidos no adoecimento deixam de ser relevantes, passando a ter
validade apenas aquilo que puder ser observado e descrito objetivamente. Desse
modo, “ [...] as dimensões conflitiva, imprevisível, irredutível e
inapreensível da subjetividade vem sendo negadas e tratadas como mera
abstrações [...]”.[5]
Nessa perspectiva, a compreensão da
doença enquanto experiência subjetiva singular, que não pode ser mensurada,
quantificada ou generalizada justamente por escapar do território da precisão,
é desconsiderada em favor de um conjunto de sinais e sintomas que se pretendem
imutáveis, gerais e passíveis de rigorosa avaliação[6]
Essa visão contribui para a
desresponsabilização do sujeito diante daquilo do qual ele padece. Dessa forma,
a doença, o sofrimento nada tem a ver com as escolhas e sobre ele nada se tem a
dizer.
A psicanálise apresenta-se como
alternativa para escapar desse modelo biologizante, uma vez que entende o
sofrimento, os sintomas para além do funcionamento biológico. Para a
psicanálise a saída para o ser humano é a palavra, esta é o melhor remédio para
amenizar a dor de existir. A palavra? Sim, a palavra, pois o homem é um ser de
linguagem, marcado pela linguagem.
Não se trata de defendermos uma
posição completamente contrária ao uso do medicamento, é claro que há muitos
casos em que tal prescrição se torna necessária. Mas é interessante ressaltar o
lugar que ele tem ocupado na vida das pessoas, muitas vezes colocado como o
‘salvador da pátria’, como ‘a pílula da felicidade’. Sabemos que tal proposta é
enganadora, pois nenhum medicamento é capaz de alterar a vida de tal modo.
Aguiar também nos apresenta
alternativas para escapar a esse reducionismo:
é preciso que o
clínico se deixe atravessar por outros saberes sobre a subjetividade humana
para que possa captar a potência de intervenção dos psicotrópicos e os
conhecimentos da biologia, sem cair na medicalização e no aprisionamento pelo
diagnóstico, mas sim criando novas possibilidades de vida para os sujeitos que
o procuram.
É preciso criar
maneiras clínicas de trabalhar com os psicotrópicos sem enclausurar a escuta, o
olhar e a intervenção em um aparato teórico cientificista, que concebe a
subjetividade como efeito exclusivo de determinações biológicas, gerando uma
clínica que só vê e produz ‘doentes’ por toda a parte.[7]
A busca da felicidade é algo que
depende da busca singular de cada um. É necessário que cada um lance o olhar
para si e procure encontrar as raízes de suas dores. Quando digo dores, faço
referências às dores do corpo e também às dores da mente. São muitas as fontes
de dores para o ser humano: as relações entre as pessoas,sejam elas amigos ou
familiares, são um exemplo deste tipo.
A psicanálise apresenta-se como
um caminho interessante às pessoas que são acometidas pelas mais variadas
formas de sofrimento ou mesmo àqueles que desejarem interrogar-se sobre suas
marcas, sobre os efeitos da linguagem sobre o seu ser, sobre aquilo que os faz
sofrer e que, portanto, desejarem escapar a toda a lógica biologizante e
medicalizante proposta na contemporaneidade para a compreensão do sofrimento
humano.
[1] DANTAS, J. B.
Tecnificação da vida: uma discussão sobre o discurso da medicalização da
sociedade. Fractal, Rev. Psicol. [online], Rio de
Janeiro, v. 21, n. 3, Dez. 2009.
[2] BARONI, D. P. M.;
VARGAS, R. F. S.; CAPONI, S. N. Diagnóstico como
nome próprio. Psicologia & Sociedade [online], 22(1), 70-77,
2010.
RODRIGUES, J. T. A medicação como única
resposta: uma miragem do contemporâneo.
Psicol. estud. [online],
Maringá, v. 8, n. 1, jun. 2003.
[3] CAPONI, S. Biopolítica e medicalização dos anormais. Physis
[online], v.19, n. 2, p. 529-549, 2009.
[4] RODRIGUES, J. T. A medicação como
única resposta: uma miragem do contemporâneo. Psicol. estud.
[online],
Maringá, v. 8, n. 1, jun. 2003. p. 15.
[5]
GUARIDO, R. A medicalização
do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus
efeitos na Educação. Educ. Pesqui. [online], São Paulo, v. 33,
n.1, abr. 2007, p.159.
[6] RODRIGUES, J. T. A medicação como
única resposta: uma miragem do contemporâneo. Psicol. estud.
[online],
Maringá, v. 8, n. 1, jun. 2003. p. 15.
[7]
AGUIAR,
A. A. de. A psiquiatria no divã. Entre as ciências da vida e a medicalização
da existência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 149.